Malone Morre – Samuel Beckett

Malone Morre Samuel Beckett

Malone está em um quarto, não sabe bem como e nem porque chegou ali, lembra-se vagamente de sua própria vida e tem apenas uma certeza, a de que vai morrer. Enquanto espera, protela este único acontecimento contando as histórias “nem bonitas nem feias” das famílias Saposcat e Louis, de Macmann e Moll. Escrito em Paris no final dos anos 1940, Malone morre forma com Molloy e O inominável – ambos publicados pela Biblioteca Azul – a famosa “trilogia do pós-guerra”. Sapo, o filho mais velho da família Saposcat, é um adolescente robusto e loiro, quieto e dado a devaneios. Ouve as conversas de seus pais e parece não entendê-las, embora eles discutam o tempo todo o seu futuro, que acham promissor, dada a sua cabeça ter uma aparência inteligente. Sapo, entretanto, prefere cismar em meio às coisas, sem pretender compreendê-las. Amante da natureza, aceita o sol, a lua, os planetas e as estrelas “com uma espécie de alegria” ingênua e gratuita. A pobre família Louis compunha-se de dois irmãos, a mãe e o pai, conhecido como grande Louis, e que era famoso sangrador e esquartejador de porcos. Viviam em uma pequena fazenda e a vida da família gira em torno do pai, que passa o ano todo à espera das ocasiões em que tem trabalho, para as quais afia com esmero suas facas. Após o esfolamento, passa o resto do ano relatando em detalhes a matança, para ele sempre diferente, a despeito do desinteresse de seus filhos e esposa. Já Macmann surge na narrativa em um momento em que é surpreendido pela chuva. Em vez de apressar-se, resolve deitar-se para assim preservar um dos lados seco. Passado algum tempo – e em Malone morre nunca se sabe quanto –, Macmann recobra os sentidos e está em um asilo, que pode ser quarto ou cela. Ali conhece Moll, designada para cuidar dele. Então, velho, decrépito e repulsivo, Macmann vive com Moll o seu primeiro e definitivo amor, como um inseparável abraço de náufragos. Malone é um homem devastado, em meio ao sereno desespero que caracteriza outras criaturas de Beckett. Ele conta histórias para evitar a reflexão, para distrair-se e enganar a morte. Em meio às histórias vai se lembrando de quem é e toda a sua fala sôfrega é uma tentativa de reconhecer-se, de formar para si mesmo um enredo que se complete: “O tanto de histórias que contei para mim, enganchado no mofo, e inchando, inchando. Dizendo a mim mesmo, É isso aí, eu a consegui, minha lenda”. Além das histórias, Malone quer fazer um inventário de suas posses, mas estas sempre se mostram refratárias a sua intenção catalogadora, porque em suas posses há objetos que não se dobram às categorias que inventa. Contar histórias, inventariar posses, repassar lembranças são recursos de Malone para manter-se vivo, pois Malone está apegado às coisas, a si mesmo, e tenta com ardor despojar-se, dissolver-se, deixar-se ir. Malone persevera em sua caixa-cripta, atualização poderosa de personagens emparedados como Gregor Samsa e o homem do subsolo de Dostoiévski, e reafirma, obstinado, sua opção pela vida apesar da dor: “Aliás pouco importa se nasci ou não, se vivi ou não, se estou morto ou somente morrendo, vou fazer como sempre fiz, na ignorância do que faço, de quem sou, de onde estou, de se eu sou”. Na “trilogia do pós-guerra” o leitor verá Beckett exercer toda sua destreza narrativa na criação das personagens que podemos chamar de beckettianas por excelência – são homens devastados, que reconhecem o fim inevitável, e ainda assim aguardam. Mas essa espera, e o leitor o verá logo nas primeiras linhas, é feita de criação literária, fazendo com que a narrativa seja ela mesma um fim.

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