“Iluminado pelas leituras de toda uma vida, Jorge Luis Borges descobre o essencial quando finalmente é empurrado para a sombra. A cegueira, dura presença aos 70 anos de idade, o deixa só diante da fonte que alimenta os clássicos.
Nesse ambiente onde as palavras são desmascaradas – porque revelam-se desnecessárias – o escritor transforma-se no oculto veio que pacientemente garimpou nas bibliotecas, e que faiscava nos olhos de uma leitura privilegiada – árvore generosa de onde brotaram seus inúmeros livros.
Memória, então, torna-se esquecimento, a literatura transmuta-se em vida e a poesia é a alta gávea que anuncia a descoberta. Neste Elogio da sombra, não é a treva que ofusca a obra, mas um outro sol, imaginário antes, real agora, quando tudo vira linguagem. Inclusive o que não pode ser alcançado pelo poema, apenas sugerido, como os volumes submersos para sempre no alto das prateleiras.
Ao desistir de tudo, o escritor emerge como personagem, abandonando os leitores à própria sorte. Não foge, se encontra. Não trava, desanda. Não morre, eterniza-se. Aproveita para fazer um inventário, que passa por Heráclito, Zeus, Buenos Aires, Joyce, Israel, o pampa – todos cenários que somem na neblina depois da última linha.
Mas fingir-se de morto não era o seu objetivo. Sua intenção de identificar-se com a matéria-prima que o envolveu o tempo todo é sincera. Retira-se da casa onde habitou para um lugar mais profundo, menos visível, mas indestrutível: é de lá que fluem os materiais forjados pelo gênio. A humildade diante do absoluto pode ser encarada como mais um jogo de predileção, mas o que salta à vista é a sobriedade inspirada pela presença da morte.
Borges aproximou-se demais da luz e, aparentemente, recusou-se a tocá-la. Virou os olhos para o outro lado e nesse movimento conquistou o definitivo espaço dos mestres. Ele nos conduz pela mão e, na beira do abismo, desaparece.
Elogio da sombra não passa de uma armadilha. O que temos na mão é pura paisagem, rede que nos enreda, sugerindo afogamento. Quem, de são consciência, teimará em escapar desse laço?”
-Nei Duclós