Essa História Está Diferente – Ronaldo Bressane

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CANÇÕES DE CHICO EM PROSA DE PESO

Quatro autores estrangeiros e seis brasileiros recriam o cancioneiro do compositor em ‘Essa história está diferente’

(Matéria do jornal ‘Estado de São Paulo’, publicada no Caderno 2 de 21/5/2010)

Chico Buarque não começou sua carreira como cantor ou compositor. Na adolescência, foi contista e cronista, escrevendo num jornal de colégio progressista dirigido por padres, antes de ser consagrado como escritor e receber prêmios importantes (como o Jabuti por Budapeste, em 2004). Talvez por isso as letras de suas canções estejam impregnadas de cifradas citações literárias – de Eurípides (Gota d’água) a Maupassant (Geni) – e exerçam atração incomum sobre outros autores. Dez deles foram selecionados pelo escritor e jornalista Ronaldo Bressane (autor de Céu de Lúcifer) para recriar em prosa o cancioneiro de Buarque no livro ‘Essa história está diferente’, que chega às livrarias dia 27 e reúne dez contos de autores brasileiros e estrangeiros. Integram a última lista os argentinos Alan Pauls e Rodrigo Fresán, o mexicano Mario Bellatin, o moçambicano Mia Couto. Os seis brasileiros são o mineiro André Sant’Anna, o paulistano Cadão Volpato, a carioca Carola Saavedra, os gaúchos João Gilberto Noll e Luis Fernando Verissimo e o cearense Xico Sá.

Bressane não dirigiu os ouvidos de seus convidados. Concedeu a eles total liberdade para a escolha das canções, reinterpretadas ou simplesmente usadas como pretexto para a construção desses dez contos, concebidos em diferentes registros, que vão do cômico (caso da “versão” de Verissimo para ‘Feijoada completa’) à tragédia social (a dos meninos de rua contada por André Sant’Anna com base na canção ‘Brejo da Cruz’). Entre o riso e o siso há lugar para uma viagem nostálgica de João Gilberto Noll, que toma a canção ‘As vitrines’ como guia do conto ‘A calça branca’, mudando o sexo dos personagens ao fazer da figura entrevista nas vitrines de uma galeria um homem que foi o primeiro amante do observador. Ele o vê à saída do cinema, acompanhado de um jovem com idade para ser seu filho. Nada demais. Também Chico se colocou no lugar de várias mulheres para compor canções hoje clássicas como ‘Folhetim’, revista e ampliada por Xico Sá no conto ‘Um corte de cetim’.

A canção fala de uma mulher fácil que fica feliz com uma pedra falsa ou um corte de cetim. A de Xico Sá é ainda mais libertina. Desmoraliza o companheiro traído, dividindo o corte de cetim vermelho que ganhou de presente com o amante para confeccionar suas fantasias de carnaval. Desse conto suburbano surge o retrato de um Brasil rodriguiano de que trata também Luis Fernando Verissimo em ‘Feijoada completa’, baseado na canção homônima. O protagonista do conto é um sujeito folgado, que leva os amigos para tomar cerveja e comer o prato típico preparado pela patroa. Verissimo segue fielmente a letra, mas faz Carolina cozinhar a feijoada numa panela de pressão e ignorar o marido tosco, imitando no espelho Jeanne Moreau ao puxar o canto da boca e soltar um “pauvre type”.

Curiosamente, os autores estrangeiros são mais solenes ao retrabalhar as canções de Buarque. O argentino Rodrigo Fresán, um dos grandes nomes das nova geração de escritores portenhos, transforma ‘Outros sonhos’ num impressionante conto sobre uma mulher em coma que dá à luz um garoto, cujo destino não será muito diferente. Adulto, ele receberá uma bala no cérebro e também entrará em coma. Alan Pauls retrabalha o conflito do casal de Ela Faz Cinema. O mexicano Mauro Bellatin, que não tem um braço, relata uma experiência pessoal e usa ‘Construção’ como metáfora. Finalmente, o moçambicano Mia Couto fala de um caso de traição para recontar ‘Olhos nos olhos’. Tocante.

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